O Afeganistão na História
Extrato do livro “A Vaca na Estrada“
Nossa intenção era avançar pelo Irã o mais rapidamente possível, para chegar logo à Índia e ao Nepal. As francesas, por sua vez, queriam visitar outros lugares do Irã antes de seguirem para o Afeganistão. Foi uma triste despedida, já que tínhamos nos acostumado com a divertida companhia delas. Um dia, após um último café da manhã com as moças, nos separamos e pegamos a estrada.
Estive no Afeganistão pouco antes da invasão russa, quando a região atravessava um período tranquilo, sem ocupantes soviéticos, sem talibãs, sem soldados norte-americanos. País pobre, um dos mais miseráveis do planeta e, ao mesmo tempo, fascinante, foi desde a Pré-História rota de migração de tribos indoeuropeias que, mais tarde, invadiriam o subcontinente indiano. O território que percorri de carro na década de 1970 integrou o Império Persa e foi conquistado por Alexandre, o Grande. As cidades fundadas ou conquistadas por ele se tornariam as atuais Herat, Kandahar e Kabul, que visitei.
Por volta de 300 a. C. uma parte do atual Afeganistão passou a integrar o império budista Mauria, até tornar-se um reino independente, que terminaria, alguns séculos mais tarde, dominado por outros povos.
No século VII, o Afeganistão caiu nas mãos dos maometanos, que impuseram, com alguma dificuldade, sua religião, hoje dominante no país, onde é praticada de modo mais intolerante e fundamentalista do que nas demais nações muçulmanas. Tão radical, diga-se de passagem, que incomoda até mesmo aos aiatolás iranianos.
As monarquias afegãs
A Rota da Seda, da Europa à China, que teria sido percorrida por Marco Polo, atravessava o Afeganistão. Longas caravanas de camelos carregavam seda e outros produtos do Oriente, percorrendo os elevados planaltos junto ao Himalaia e as passagens tortuosas do Hindu Kursh, a cordilheira que corta parte do Afeganistão e do Paquistão, para alcançar os mercados europeus, em viagens que duravam meses.
Quis o destino que, no século XIX, a terra dos afegãos, vizinha do Turcomenistão, do Usbequistão e de outros “ãos”, ficasse perigosamente próxima ao Império Russo e ao Império Britânico das Índias. Os ingleses tentaram por duas vezes conquistá-la, mas a resistência afegã fez com que a British Army sofresse grandes perdas e fosse forçada a abandonar as cidades ocupadas.
O país chegou a ter um monarca de ideias um pouquinho mais liberais: Amanullah, filho de Habibullah, assassinado por opositores em 1919. Amanullah conseguiu abolir a servidão, mas quando quis transformar a situação da mulher, lastimável até hoje, garantindo-lhe alguns direitos básicos, comuns no resto do mundo civilizado, teve que abandonar às pressas seu tribal e atrasado país, que pouco mudou desde então. Certas ações dos talibãs, como incendiar escolas para meninas e agredir mulheres que saem às ruas sem burca, são exemplos atuais da mentalidade dos afegãos mais religiosos quanto à questão feminina.
A república inconquistável
Quando estive no Afeganistão, a república havia sido proclamada poucos anos antes, em 1973, mediante um golpe de estado que não mudara muita coisa. Aliás, os golpistas eram, em alguns aspectos, mais conservadores que o rei deposto. No final de abril de 1978, comunistas afegãos tomaram o poder, apoiados pela União Soviética. Os russos, que enviaram quase 120 mil soldados ao país e ocuparam as principais cidades, terminaram acuados pela resistência afegã mujahidin apoiada pelos Estados Unidos, pelo Paquistão e pela China. Havia a Guerra Fria de um lado, a rivalidade indopaquistanesa de outro. A Índia, inimiga histórica do Paquistão, apoiado pela China, era aliada dos russos e tinha disputas territoriais com os chineses, com os quais trocava ocasionalmente canhonaços na fronteira himalaiana. No meio da briga estava o infeliz Afeganistão, sem recursos naturais, dividido entre os chefões de etnias rivais, nenhum deles “do bem”.
Na década de 1980, soviéticos também se afundaram no atoleiro afegão. Talvez o mesmo ocorra com os norte-americanos. No início, todos chegam, dominam. Depois começa a resistência, facilitada pelo território montanhoso e cheio de cavernas, abrigos perfeitos para qualquer guerrilha. Conquistar o Afeganistão não é fácil.
A guerrilha mujahidin
Da guerrilha mujahidin, liderada por homens como Osama Bin Laden, treinado pela CIA contra os russos, sairia uma aliança com o Talibã, movimento radical islâmico. O Afeganistão parece ser o país onde o feitiço sempre se volta contra o feiticeiro! Acreditando-se fortes, sem aprender com as lições da História, os Estados Unidos de George W. Bush, depois de ocupar sem dificuldade Kabul e outras cidades importantes, caíram na ilusão de acreditar que derrotaram o Talibã e voltaram-se contra outro ex-aliado que não estava se comportando direito: Saddam Hussein, o sanguinário ditador do país, o mesmo que os norte-americanos abasteceram com armas químicas durante a guerra entre Iraque e Irã, de 1980 a 1988. FRASE LONGA
Como resultado, os EUA tornaram a vida no Iraque ainda pior do que na época de Saddam. Descuidando-se do Afeganistão, demoraram a perceber que o Talibã, reorganizado, voltou, parecendo renascer das cinzas, como o monstro alienígena do filme Alien, o Oitavo Passageiro. Osama continua solto, Obama herdou o pepino.
Uma situação política complicada
Vendo essa guerra, percebo como é complicado transformar um país dividido por clãs rivais e dominado pela ignorância em uma democracia. Da mesma forma que os russos, os americanos quebraram e continuam quebrando a cara porque querem vencer uma guerra sem transformar primeiro a mentalidade. Desde a invasão soviética até o início de 2010, mais de um milhão de pessoas morreram nos conflitos. E continuam morrendo, seja em atentados terroristas promovidos por radicais islâmicos, seja por bombas jogadas por engano pela OTAN sobre aldeias. Boa parte das vítimas são civis, mulheres, crianças e idosos.
Enfim, pode ser que meu relato tenha ao menos o mérito de descrever o Afeganistão que conheci e do qual tanto gostei. Um Afeganistão do qual muita gente nunca ouviu falar e não tem ideia de como era. Para mim, era o Oriente que buscava nessa viagem: exótico, com lindas paisagens, pacífico, charmoso. O Oriente do povo de turbante que vivia como nos contos das 1001 Noites que eu lia quando criança.
Herat
Herat, perto da fronteira iraniana, um dos principais centros urbanos afegãos mas, para os parâmetros brasileiros, uma cidadezinha, foi meu primeiro encontro com o Afeganistão. A cidade era um conjunto de construções baixas; a maior parte não ultrapassava dois andares. A maioria das ruas não tinha sequer calçamento. Nenhum traço arquitetônico particular se destacava. Ali encontramos, Bernard e eu, um hotel simpático e barato — dado relevante para viajantes de orçamento apertado como nós. Os quartos bem simples, satisfatoriamente limpos, tinham duas camas, prateleiras, criado-mudo, um espelho: o básico. E, o que é importante, banheiro decente. A sala acarpetada onde eram servidos o chá e as refeições tinha mesinhas baixas, almofadões, panôs e grandes bandejas de cobre cinzelado nas paredes.
As tardes em Herat nessa época do ano eram azulíssimas, quentes e secas, muito agradáveis. As noites eram frescas, mas nunca realmente frias, a não ser, talvez, no fim da madrugada. É incrível que Herat, a deliciosa Herat, minha inesquecível porta de entrada no Afeganistão, tenha se tornado palco de violentos combates entre insurgentes talibãs e soldados da OTAN e que esse pequeno paraíso tenha se convertido num inferno.
Estávamos cansados de rodar quilômetros e quilômetros todos os dias pelas estradas da Ásia. Por isso mesmo, a semana que passamos em Herat foi como se estivéssemos de férias. Percorríamos as ruas da cidade, acompanhávamos o trabalho de artesãos em ateliês, ouvíamos música no salão de nosso hoteleco, bronzeávamo-nos à beira da piscina do tal hotel de luxo, aproveitando o sol e as temperaturas amenas da tarde. Pudemos também trocar ideias com outros viajantes ocidentais e conhecemos duas italianas, que acabaram dividindo conosco um pequeno apartamento com terraço no 3º andar do hotelzinho. A maioria dos estrangeiros se dirigia, como nós, a Katmandu, e tinha mil expectativas sobre a viagem.
Sexo, Drogas e Rock N Roll.
Se em algum momento eu tive a ilusão de que iria escutar música local, enganei-me. O dono do hotel só punha para tocar Beatles, Rolling Stones e outros antigos sucessos que agradavam a moçada mochileira, conseguidos a troco de banana com hippies quebrados que voltavam da Ásia por terra. No ar, o perfume de incenso se misturava ao do haxixe, um subproduto da cannabis sativa, fumado livremente em mesas do salão em cachimbos de barro chamados chillums. Na época em que atravessei o Afeganistão, o país já era um dos destinos favoritos de hippies, atraídos pelo haxixe local, considerado o melhor do mundo. Não será necessário, portanto, mencionar que em outros locais por nós percorridos, o consumo da substância em público era comum. De qualquer modo, os hippies fumavam quietos em seu canto, sem incomodar como fazem certos bêbados. O haxixe, na verdade, não chega a ser um problema quando comparado a outro produto afegão muito mais perigoso: o ópio. Como a agricultura tradicional do Afeganistão é pouco rentável e meramente de subsistência — trigo, arroz, batatas, cevada, frutas —, os camponeses se voltaram para a produção da papoula, utilizada para a fabricação do ópio e seus derivados, como a heroína, uma droga pesada, viciante e de difícil desintoxicação. O maior obstáculo à sua erradicação é que milhares de miseráveis sobrevivem de seu plantio e não foi oferecida alternativa a esses pobres diabos. Aliás, desde a invasão norte-americana, a exportação de ópio passou a aumentar a cada ano.
O Talibã
Curiosamente, quando estava no poder, o Talibã conseguiu certo sucesso no combate à produção de ópio. Depois da invasão dos EUA, a verdadeira fortuna resultante desse comércio passou a financiar o terrorismo, bem como aos chamados Senhoresda Guerra, chefes tribais todo-poderosos e corruptos.
O Afeganistão nos tempos de paz
Nos restaurantes frequentados por estrangeiros, o menu misturava pratos afegãos, como arroz com legumes, passas e carne de carneiro picada, e comida ocidental, apelidada de freak’s food, destinada a peitar qualquer larica: filés com fritas, milk-shakes, bolos de chocolate…
Logo que chegamos, ficamos sabendo de um hotel de luxo, com piscina, fora da cidade, aberto aos ocidentais, fossem hóspedes ou não. Para ir até lá, deixamos o carro e fretamos uma espécie de charrete com os bancos dos passageiros voltados para trás, onde nos aboletamos com os pés balançando no ar. O grande hotel estava quase vazio. Fomos diretamente para a piscina, depois de deixar um bashish para o guarda na entrada. O bashish, palavra que pode significar presente, gorjeta, propina ou até esmola, é uma instituição oriental. O hotel estava vazio; somente nós e dois casais vindos desde a Espanha em uma Kombi usávamos a piscina. Os espanhóis tinham percorrido um caminho semelhante ao nosso e parado, depois de passar pela Iugoslávia, nas mesmas cidades que nós. O papo sobre nossas respectivas aventuras estendeu-se até quase o anoitecer quando, do deck, apreciamos um pôr-do-sol de beleza indescritível.
Mulher para se casar usa burka
Por vezes deixávamos o carro e alugávamos a tal charrete para percorrer a cidade. Mesmo nas ruas de maior movimento, víamos praticamente só homens. Mulheres afegãs eram raras, sempre com o rosto coberto com um véu na altura dos olhos, ou ainda, o corpo inteiro escondido, da cabeça aos pés, sob uma vestimenta negra, a burca. Não havia nem mesmo uma abertura para os olhos, mas apenas uma renda que lhes permitia enxergar alguma coisa — ou a sombra de alguma coisa. A impressão que me causou esse apartheid sexual foi, confesso, bem desagradável. Os afegãos não perceberam que a convivência entre homens e mulheres e a liberdade da mulher é boa para ambos os sexos.
— Em meu país ninguém reclama de mulher com pouca roupa — disse eu, em tom de brincadeira, para o afegão dono do hotel onde estávamos hospedados.
— É, mas não são mulheres para casar — respondeu ele.
— Não para casar com afegãos — corrigi.
O domínio do fundamentalismo
Já naquela época poucas meninas frequentavam escolas que, com a tomada do poder pelos talibãs, foram simplesmente fechadas. Surgiu o Ministério da Virtude e Supressão do Vício, encarregado de impor a sharia, ou lei islâmica, e de definir como as pessoas deveriam se comportar. Mulheres foram proibidas de trabalhar fora, os homens tiveram que deixar a barba crescer. Ninguém podia mais ouvir música ocidental, as poucas salas de cinema de Kabul foram fechadas. Beber uma cerveja tornou-se um crime punido com chicotadas em público.
Como o dono do hotelzinho em que estávamos hospedados falava inglês relativamente bem, pude conversar com ele e aprender algo sobre os costumes locais. Confidenciou-me que esperava, com a renda de seu estabelecimento, pagar o dote de uma esposa. Talvez em mais dois ou três anos. Mal sabia o infeliz que os tempos de paz estavam acabando e que, muito em breve, seu hotel fecharia por falta de hóspedes. Muitos afegãos trabalhavam até vinte anos de suas vidas, economizando centavo por centavo, para conseguir o suficiente para ter uma esposa. Na prática, entre o povão, somente os mais velhos acumulavam o capital para a compra — sim, compra é a palavra certa — de uma jovem esposa. Comentando o fato com minha mulher ao escrever este livro, ela observou que isso pode explicar porque em tantos documentários e reportagens sobre essa região vemos com frequencia homens idosos casados com meninas.
Kandahar
Para prosseguir viagem até Kabul havia dois caminhos: o do norte e o do sul. O melhor, pelo norte, passava por Kandahar. A estrada, construída por russos e norte-americanos, atravessava um planalto acidentado, de vegetação rala. Somente em alguns trechos, onde havia água, encontrávamos nômades acampados, às vezes alguma cabana, camelos, rebanhos e pastores de aparência bíblica, que usavam turbantes e nos pediam cigarros.
Mais uma vez, o vento do deserto era tão forte que, como em outros momentos da viagem, segurava o carro, cujo motor começava a falhar quando enfrentávamos pequenas elevações. Não sabíamos se o automóvel estava pedindo uma regulagem ou se a gasolina do país era muito vagabunda. Eram raros os lugares onde podíamos abastecer. Isso nos obrigava a ter um galão com combustível para uma emergência, o que me preocupava, por causa dos cigarros que Bernard acendia dentro do carro. Na estrada, os escassos “postos” de gasolina tinham bombas acionadas manualmente, pois não havia eletricidade. O movimento de veículos era mínimo. Só ocasionalmente cruzávamos com algum velho caminhão Tata indiano pintado de cores vivas, sempre apinhado de gente, galinhas, cabras e mercadorias. Eram raros os ônibus.
O deserto de Band I-Amir
Descobríamos elevações rochosas onde, protegidos do vento, podíamos parar, preparar um sanduíche, beber um pouco de água gelada da garrafa térmica. Quando olhávamos em um sentido ou outro, havia apenas a estrada perdendo-se na distância; nenhum carro, nenhuma casa, nenhuma plantação. Aquela faixa de asfalto na paisagem seca era o único sinal da presença humana. De um lado e de outro da estrada, por muitos quilômetros, só existiam rochedos e montanhas sem vegetação. Quando parávamos de conversar, o único som que ouvíamos era do vento agitando a areia a alguns centímetros do solo. O silêncio era quase absoluto. Quando se grita num lugar assim, o som parece explodir no ar, depois evapora como água. Existia somente um nada amarelado e o azulão do céu. Se nos afastássemos alguns metros da estrada, era como se a vida não existisse, como se tivéssemos desembarcado em Marte. Aliás, muitos anos depois, ao ver fotos tiradas em missões não tripuladas, achei de fato o cenário marciano muito parecido com o deserto afegão!
Só no final da tarde alguns relevos se destacavam, formando sombras e contornos bem marcados na paisagem. A sensação do deserto, do vazio, dos amplos horizontes sem vida é especial. Andando por ali, caminha-se por um terreno sempre igual: pedra e areia. Se parássemos e olhássemos para qualquer lado, abstraindo-se o asfalto e o carro, a paisagem seria idêntica. Não havia direção a seguir. Se me afastasse, se desse a volta em uma das elevações, se ficasse sozinho, seria o último ser vivo de um planeta morto.
As flores do deserto
Numa das paradas para comer, vimos algo diferente: estranhas manchas roxas numa encosta. Foi por isso, aliás, que paramos ali. Fomos espiar de perto aquele fenômeno de cores inesperadas na paisagem: eram flores secas, de uma espécie que nunca víramos antes. Como puderam nascer nesse lugar árido era para nós um mistério. O deserto tinha, afinal, alguma vida.
Kandahar
Enfrentamos dois dias de estrada até Kandahar. Ficamos naquela ocasião em um hotel agradável. Nossos quartos davam para um magnífico jardim cheio de árvores e flores. Em frente ao hotel havia um segundo jardim, com mesinhas entre os pés de romã e figueiras. Um odor de flores e frutas perfumava o ar. Até então, para meu gosto, corrêramos muito. Bernard tinha a pressa de um caminhoneiro. Na Turquia isso me incomodara um pouco, mas não foi um problema porque eu já visitara o país duas outras vezes quando morava em Paris. O Irã foi menos interessante e não liguei tampouco que ficássemos no país apenas uns dez dias. No Afeganistão, porém, tive a sensação de ter finalmente chegado a algum lugar: o começo do Oriente que eu procurava. Queria desfrutá-lo.
Boa comida e refeições num jardim florido
Podia-se jantar no jardim do hotel e a cozinha, excelente, incluía pratos afegãos e ocidentais. Com US$ 1 obtínhamos 25 afeganis, a moeda local: o preço da diária para cada um de nós. O paraíso por preço de liquidação.
Ao anoitecer fomos dar uma volta no mercado local. Uma bagunça de gente, bicicletas, charretes e lambretas passando ao lado de camelos. Caminhando entre o povo escutávamos o vozerio dos mercadores, as barganhas. O mercado é uma instituição no Oriente e tem uma importância incompreensível para o ocidental. É onde se fica sabendo das notícias, onde se encontram vizinhos e amigos. É muito mais do que um lugar onde se fazer compras. Ficamos curiosos ao deparar com boa quantidade de frutas: melões perfumados, melancias, figos e maçãs. Não vira em lugar algum uma única plantação do quer que fosse. Onde as cultivavam em um país de desertos?
A época dos mochileiros
Em nosso hotel havia grupos de estrangeiros, entre eles mulheres que viajavam sozinhas; europeias, principalmente. Claro, rolavam paquera, romance e sexo. Os afegãos, moralistas pela própria religião, não se importavam muito com as ligações entre estrangeiros. Creio que achavam, de fato, que as mulheres estrangeiras não eram iguais às deles, e nem tentavam muito entender. Não vi uma só europeia com namorado afegão em toda a viagem pelo país. O machismo é tal que as turistas têm medo de qualquer aproximação, mesmo as mais liberadas e curiosas, tentadas a conhecer mais de perto os homens da terra.
Nós, estrangeiros, éramos apenas gente com quem os afegãos faziam bons negócios. Tínhamos, para eles, uma moralidade esquisita. Para ser honesto, a deles também nos parecia estranha, pelo jeito como tratavam as mulheres e pelo assédio aos homens ocidentais. Afinal, ali, sem casar, ninguém transava e, como ninguém se casava antes de conseguir o dinheiro do dote, um discreto homossexualismo parecia fazer parte da cultura afegã. Uma contradição, já que Alá condena também a sodomia. Por sermos tipos latinos peludos e barbudos, que rosnávamos feio à primeira tentativa de cantada, Bernard e eu éramos raramente abordados. Mas os jovens nórdicos ou alemães, loirinhos, imberbes, talvez mais tímidos, faziam inegável sucesso.
Café da manhã adaptado para o paladar ocidental
O café da manhã servido em nosso hotelzinho destinava-se a agradar ao paladar ocidental. Podia-se comer em Kandahar, como em qualquer cidade europeia ou norte-americana, ovos, queijo, manteiga. Só bacon não fazia parte do cardápio, para desgosto dos norte-americanos. A carne de porco, considerada impura, não consta dos menus autorizados por Alá. (Nem por Jeová, embora eu tenha no Brasil amigos judeus que comem feijoada aos sábados.) De fato, carne de porco mal cozida é um perigo em qualquer tempo e lugar: os povos da Ásia Menor descobriram isso há milênios. Essa é a origem da interdição. Embora os motivos sejam religiosos, para eles comer carne suína é um costume tão abominável como seria para nós comer cachorro, como acontece em algumas regiões da China e de outros países da Ásia onde, aliás, acredita-se que o cachorro foi domesticado justamente para servir de alimento.
Em Kandahar retomamos o fôlego mais uma vez antes de seguir para Kabul. Não tínhamos pressa: estávamos no caminho certo, o lugar era confortável e barato e tudo nos parecia perfeito: a comida, o clima e a companhia.
A estrada para Kabul
Quando, novamente, tomamos a estrada para Kabul, estávamos mais relaxados, de corpo e de cabeça. Rodamos alguns quilômetros até pararmos para encher o tanque numa bomba manual junto à estrada, perto de um pequeno forte construído em adobe e argamassa misturada com palha. Subi para espiar. Qual o mistério daquele velho fortim abandonado no meio do deserto, aparentemente sem serventia? Quem o construiu, para que e quando?
Em outro trecho da estrada, próximo a Kelat, todos os carros estrangeiros estavam sendo parados pela polícia. Ao que parece, ocorrera um acidente com um automóvel europeu. Quando viram o pára-lama amassado de nosso Renault, chamaram-nos para dentro de um pequeno posto policial. Felizmente, depois de meia hora de tensão, nos liberaram; não éramos as pessoas que procuravam.
Dirigir à noite: um risco
Mais adiante fomos parados de novo, desta vez por um rebanho de camelos que atravessava a estrada. Ali tiramos algumas de nossas melhores fotos, com o Renault rodeado pelos bichos, dezenas deles. Na maior aldeia marcada no mapa, paramos e almoçamos numa tenda, onde comemos com as mãos. Era o único “restaurante” disponível.
Faltava pouco para chegarmos a Kabul, mas anoitecia. Não havia cidade alguma antes da capital afegã. Depois de confabular, resolvemos fazer o que até então tínhamos conseguido evitar: dirigir à noite. A estrada, embora pouco movimentada e asfaltada, tornava-se perigosa depois do anoitecer. Os caminhões, muito lentos, rodavam sem lanterna traseira e, quando vinham no sentido contrário, nos ofuscavam com seus faróis altos. Como a via não era sinalizada, nem mesmo por faixas centrais, não enxergávamos muita coisa
O camelo na estrada
Corríamos ainda o risco de bater em algum camelo selvagem, animal comum nesse deserto que, às vezes, atravessa a estrada repentinamente. Era muito mais provável um acidente com um bicho desses do que com outro veículo, como tivemos a oportunidade de ver dias depois: um jipe de fabricação russa colidira com um camelo selvagem. Paramos o carro para dar uma olhada. O pára-brisa e a frente do veículo estavam detonados, o banco do motorista estava cheio de sangue, o rádio ainda estava ligado. O camelo é um animal enorme; colidir com um deles é quase como bater em outro automóvel.
O motorista não estava mais ali. Provavelmente fora recolhido por alguém que passara pelo local antes de nós. O camelo, morto, estava estirado na frente do carro, cujas luzes estavam acesas; metade do veículo estava no acostamento, metade na estrada. Coloquei a mão na barriga do bicho: ainda estava quente, sinal de que o acidente ocorrera há pouco. Depois de uma rápida examinada no interior do jipe com nossa lanterna de mão, demos nossa contribuição, empurrando-o para fora da estrada para evitar outro acidente. Em seguida abandonamos rapidamente o local, medida sábia num país como aquele, onde estrangeiros podem se comprometer por muito pouco. Não valia a pena ver mais, nem servir de testemunha, pois corríamos o risco de sermos impedidos de sair do país durante as investigações. Ou talvez tivéssemos que provar que não éramos os proprietários do camelo em questão.
Kabul
Kabul era um dos locais favoritos de mochileiros e aventureiros. Víamos em suas ruas veículos de vários países da Europa. No centro, pequenos hotéis disputavam os estrangeiros, já que não existia turismo convencional no país. Enquanto circulávamos procurando hotel, líamos as placas do tipo Kabul Bakery and Restaurant ou Hotel – boiled water available. Todos os estabelecimentos possuíam ambientes voltados especialmente para esse público, com salas e quartos decorados com murais psicodélicos, rock como som de fundo e menus ocidentalizados, iguais aos que havia em Herat e em Kandahar. Isso eu veria no decorrer da viagem, até Katmandu: as mesmas músicas, os mesmos pratos, as mesmas inspirações. Impressionante como aprenderam a conquistar a clientela estrangeira.
Depois de ter percorrido o Brasil, os Estados Unidos e países da Europa e do Oriente Médio, foi nesse fim de mundo chamado Kabul que recebi a primeira bronca na minha vida por ter atravessado a pé — na faixa de segurança — com o farol vermelho, o único para pedestres da cidade, num momento em que a avenida estava quase deserta. A segunda foi em 2004, em Tallin, capital da Estônia, por volta da meia-noite, quando minha esposa Bebel e eu atravessamos, fora da faixa de pedestres, uma avenida completamente deserta, sem imaginar que um casal de jovens guardas civis iria surgir do nada para nos repreender. Em Nova York, Londres ou Paris isso nunca aconteceu!
Kabul naquela época era uma cidade pobre, mas simpática. Mesmo sendo a capital do país, sua área central tinha poucas ruas asfaltadas. Seu charme era o próprio ambiente criado pelos estrangeiros que percorriam o Afeganistão e se concentravam em torno do restaurante Mercedes, onde também funcionava um hotel, e no Green Hotel, do outro lado da rua. Esses eram os lugares para ouvir música, fazer amizades ou comer arroz biryani preparado com carne de carneiro moída, passas, lascas de casca de laranja e amêndoas.
Os mochileiros de turbante
Olhando os estrangeiros nos restaurantes nos hoteizinhos de mochileiros podíamos saber, apenas pela vestimenta, há quanto tempo estavam na estrada. Todos chegavam com aparência bem ocidental e iam aos poucos se transformando. No começo compravam túnicas, depois a larga e típica calça afegã, com um botão no tornozelo, o colete e o tradicional gorrinho. Logo, o viajante estava mais “afeganizado” do que o próprio pessoal da terra. Um americano que estava em nosso hotel usava até mesmo um turbante.
Embora inicialmente divertida, aquela vida mansa e despreocupada, a vagabundagem pelos mercados de artesanato, o chá indolente no Mercedes e toda social life entre mochileiros começou, depois de uma semana, a se tornar monótona. O apelo da estrada se fazia sentir.
Durante uns três dias, falamos em partir. Havia um lugar sobre o qual os estrangeiros contavam maravilhas. Na primeira vez que ouvi falar em Band-I-Amir, o próprio nome me pareceu estranho, belo, algo bíblico, difícil de ser alcançado, como as minas do rei Salomão. Nós tínhamos todo o tempo do mundo. Por que não seguir rumo a esses famosos lagos?
Os Budas de Bamiyan
Tomamos coragem e partimos de Kabul pela manhã rumo à primeira etapa do caminho para Band-I-Amir: Bamiyan, a 200 km de Kabul, onde havia gigantescas estátuas de Buda, em estilo Gandhara, esculpidas no século VI na face de um rochedo.
O Budismo desapareceu no Afeganistão com a imposição do Islamismo, mas as magníficas estátuas ficaram como testemunho do tempo — até fanáticos do Talibã dinamitá-las em nome de sua fé, em 2001. Ao assistir à notícia na TV fiquei deprimido por ver até onde a imbecilidade humana pode chegar. Lembro-me de ter visitado ruínas de templos pagãos do Império Romano, quase todos destruídos pela Igreja Católica, quando consolidava seu poder na Europa. Atos tão sem sentido quanto os cometidos pelo Talibã. A diferença é que os talibãs fazem isso hoje, não há dois mil anos! Pior: não são só eles.
Durante o governo Bush, os norte-americanos provocaram dano de outro tipo, mas equivalente, no Iraque. Um riquíssimo acervo arqueológico sobre civilizações mesopotâmicas do Museu de Bagdá foi saqueado quando as tropas norte-americanas invadiram o país. Na época, o então Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, mandou que os soldados defendessem os poços de petróleo, mas não deslocou um só homem para proteger esse museu, que foi alvo da cobiça de ladrões. Questionado por entidades culturais dos EUA e de outros países, horrorizados com a pilhagem de um patrimônio que, afinal, é de toda a Humanidade, Rumsfeld retrucou: “Nas guerras, essas coisas acontecem.” Alguém me explique qual é a diferença entre esse senhor e um talibã quando se trata de preservação de bens culturais.
A 3.000 metros de altitude
A parte asfaltada da estrada entre Kabul e Bamyan era razoável; a outra, de terra, era estreita e esburacada. Nosso Renault, que há tempos precisava de uma revisão, não aguentou a subida, muito íngreme. A solução veio na forma de um lento, mas possante, caminhão de fabricação soviética, que nos rebocou montanha acima mediante um bashish. O resto do terreno, após a subida da serra, era menos inclinado. Estávamos a 3.000m de altitude. Do alto pudemos ver o quanto havíamos subido. As montanhas mais baixas, secas, desprovidas de vegetação, sucediam-se em degraus atrás de nós. Era como se tivéssemos alcançado o teto do mundo. No final da tarde chegamos a Bamiyan, um lugar perdido, sem nenhuma via asfaltada. O lugarejo possuía apenas algumas casas de adobe construídas dos dois lados da estrada, que era também a rua principal do povoado, onde ficava nosso “hotel”, um casarão degringolado. Famintos e gelados, encaramos com prazer um chá quente junto à lareira e, pouco mais tarde, o jantar: cabrito com legumes. Comemos numa grande mesa de madeira, tendo por companhia meia dúzia de estrangeiros — um casal nórdico e um pequeno grupo de nova-iorquinos —, enquanto escutávamos o afegão proprietário do hotel tocar uma espécie de guitarra, o que ajudava a criar um ambiente muito aconchegante.
Esse mundo acabou. Norte-americanos que vão hoje ao Afeganistão não são turistas, mas soldados.
O escorpião no banheiro e os Budas de Bamyan
Dada a simplicidade do local, ficamos felizes, no dia seguinte, quando pudemos ter água quente — em baldes — para um banho matinal. Só não foi muito agradável encontrar um escorpião no banheiro. Depois, vim a saber, preocupado, que esses bichos eram comuns na região. A providência que adotamos foi passar a inspecionar cuidadosamente nossos quartos durante toda a permanência no país. Revirávamos até os lençóis, travesseiros e cobertores. Em uma das vezes encontramos, de fato, um escorpião minúsculo sob um armário. Os mais venenosos são justamente os menores.
Incrustadas nas montanhas, perto de nosso hoteleco, ficavam as estátuas de Buda. A maior delas estava mal conservada e tinha o rosto semidestruído, provavelmente objeto de algum vandalismo pré-Talibã. A outra, à sua direita, um pouco mais afastada, encontrava-se em melhor estado. Embora ambas fossem impressionantes pelo tamanho e por serem tão antigas, depois de conhecê-las não havia muito mais a fazer em Bamiyan. O lugar só tinha a oferecer poeira, vento e um frio dos diabos à noite. Por que construíram tão belas esculturas em um lugar tão inóspito, tão longe de qualquer civilização de sua época?
No outro dia, logo cedo, levamos o Renault para a oficina de um afegão que consertava quase todos os tipos de veículos do mundo: russos, japoneses, americanos, europeus. Ao vê-lo não botei muita fé; mas quando, por volta de meio-dia, passamos na oficina, o carro estava ótimo, como se tivesse sarado de uma pneumonia. A segunda surpresa foi o preço: nós quase caímos duros.
O povo das cavernas
Junto a Bamiyan havia cavernas habitadas pelo povo pobre do lugar. Sim, cavernas, como as do homem pré-histórico. As mulheres, principalmente, quase não saiam de dentro delas. Quando o faziam, entravam correndo tão logo nos avistavam, cobrindo o rosto. Só os homens iam à “cidade”.
De Bamiyan para Band-I-Amir, a estrada era especialmente bonita, com grandes desfiladeiros, verdadeiros cânions, e construções que lembravam fortins, mas eram na realidade silos altos, protegidos por muros. Às vezes, rodando junto a riachos ladeados por vegetação — as únicas áreas habitáveis nesse deserto de altitude — encontrávamos nômades.
Em alguns trechos a “estrada” desaparecia, dividindo-se em trilhas que contornavam pequenas elevações e se reencontravam mais adiante. Algumas poucas vezes cruzávamos com carros europeus, que saudávamos com toques de buzina.
Band-I-Amir
A chegada a Band-I-Amir foi um choque de beleza. No meio do deserto de tons amarelos e marrons, topamos com aqueles lagos de azul intenso. O contraste impressionava!
Em diferentes níveis, os lagos eram verdadeiras barragens naturais, com terras mais baixas em volta dos “muros”, que mantinham a água represada. Os afegãos cavavam brechas na parte superior das barragens, por onde deixavam a água vazar, utilizando-a para mover moinhos ou como bebedouros para cabras, cavalos e camelos.
Alojamo-nos em uma cabana de palha que era, na prática, um grande cesto virado de cabeça para baixo, com uma porta feita com um tapete bem espesso. As camas tinham pesados cobertores, sinal de que o frio à noite era bravo.
Descarregamos as mochilas, deixamos o carro frente à cabana e saímos para caminhar até o lago mais próximo, o tal dique natural que avistamos ao chegar. Às cinco ou seis horas da tarde era o momento mágico do crepúsculo, com o sol baixo projetando sombras contra os desfiladeiros que formavam o fundo da paisagem. Caminhávamos na parte mais profunda do vale, uma espécie de cânion escavado pelas águas em tempos remotos, com paredes quase verticais de algumas centenas de metros de altura de ambos os lados. Ficamos sabendo depois que, no inverno, os lagos congelam. O frio nessas montanhas deve ser, então, insuportável. Fiquei curioso, imaginando como seria essa paisagem sob a neve.
Cavalgando pelo deserto
No dia seguinte alugamos cavalos em companhia de um grupo de três moças e dois rapazes de Florença. Nenhum “fogoso corcel”; todos os animais eram pangarés preguiçosos. Paramos os cavalos no alto do desfiladeiro. O abismo nos dava medo e, provavelmente, muito mais aos cavalos. Por isso, a uma dezena de metros da borda resolvemos apear e segurar as rédeas. Lá de cima vimos um grupo de moças e rapazes ocidentais bronzeando-se à beira do lago, completamente nus. Um risco num país como aquele e na maioria das nações islâmicas; um desafio explícito ao conservadorismo afegão. Corriam entre os estrangeiros relatos de estupros de ocidentais surpreendidas praticando nudismo ou topless ou até vestidas de modo considerado, na cultura local, provocante. Em Kabul alguém nos contou a história de duas italianas que foram à polícia dar queixa de um estupro e foram violentadas pelos policiais. Felizmente, episódios assim eram exceção.
Os lagos no fundo dos canyons
Descobrir como descer até o lago não foi fácil. Descer a cavalo, nem pensar. Depois de examinar o penhasco, topamos com um tortuoso e estreito caminho junto à parede do cânion. A trilha, um tanto perigosa, levava a uma faixa de terreno alagadiço, menos de um metro acima do nível do lago que, com o degelo da primavera, devia ficar totalmente inundado. Quando as águas desciam, formavam-se sobre o fundo calcário, branco, pequenos lagos transparentes, de um azul muito claro, rodeados de tufos de vegetação.
Ao contrário da maioria dos desertos, aquele não era monótono. Apresentava um aspecto grandioso e, para dizer o mínimo, foi outra das paisagens que mais me impressionaram nessa viagem. Na volta, a uns 100m do acampamento, nossos cavalos dispararam. Não se tratava de uma galopada para satisfazer o cliente, mas um vício de cavalos de aluguel no mundo todo: só correm para voltar para a cocheira. O homem que nos alugou os cavalos quis nos cobrar o dobro porque, segundo ele, com aquela corrida, tínhamos cansado seus pangarés. Mostramos que nenhum deles estava sequer suado, estendemos-lhe o valor combinado e simplesmente viramos as costas, deixando-o falar sozinho.
Algo nos dizia que essa Ásia descontraída que estávamos conhecendo logo começaria a pegar fogo. O ambiente estava se tornando pesado em certos lugares. Quando estivemos em Kabul ouvimos uma história sobre ocidentais degolados por afegãos nas montanhas. Eram, entretanto, casos isolados e raros, ocorridos com traficantes de drogas que transportavam valores altos em dólares e se desentenderam com a máfia local. Riscos do ofício. De modo geral, porém, Kabul, com seu ar provinciano, não era mais perigosa do que a Nova York daquela época e, com certeza, muito menos do que qualquer grande cidade brasileira hoje. Não tínhamos nenhum medo de sair pela cidade, mesmo à noite. Foi na política que a coisa engrossou.
O night club do deserto
Em uma das noites que passamos em Band-I-Amir, fomos a um local que apelidamos, por brincadeira, de nightclub. Era onde se podia comer algo e tomar uma bebida quente: invariavelmente, chá. À noite fazia muito frio e as paredes de palha trançada recobertas por um tecido grosso ajudavam a conservar o calor agradável de um braseiro montado sobre uma chapa de ferro, no centro da cabana. Bem no meio, uma abertura no teto deixava escapar a fumaça. Boa invenção! Enquanto do lado de fora o frio era insuportável, dentro estava uma delícia, com uma dúzia de ocidentais acomodados sobre almofadões esparramados em cima de um tapete.
Entre os habitués do nightclub de Band-I-Amir havia um norte-americano que viajava sozinho, canadenses, belgas e ingleses. Todos, exceto o norte-americano, chegaram ao país de carro. Lá reencontramos os italianos. Uma das moças, no centro da roda, tocava violão muito bem. Acaso da estrada: uma das florentinas era muito amiga de Andrea, um arquiteto que vivia num apartamento no centro de Florença e que me hospedara em sua casa durante uma semana, quando voltei do norte da África.
Mergulho num lago gelado
O frio era tão intenso que a maior parte do grupo não foi para as cabanas; dormimos ali mesmo, em volta do braseiro.
Com as italianas conosco, pudemos, no dia seguinte, ainda cedo, nos aproximar de uma caverna habitada e até fomos recebidos pela “dona de casa”, que assava pães achatados como massa de pizza em um forno que não passava de um buraco no chão. Ela e suas filhinhas tinham pele clara, olhos azuis e cabelos loiros, como muita gente no país, provavelmente descendentes dos arianos. Outros afegãos que eu encontrara tinham tipo físico bem diferente: eram morenos, de olhos amendoados, com evidentes traços mongóis.
Por volta de meio-dia, resolvemos aproveitar a temperatura agradável para descer novamente até a beira do lago para um mergulho. Fomos de carro pela trilha no deserto percorrida a cavalo no dia anterior. Ao chegar à área semialagada formada por dezenas de pequenas lagunas, experimentamos a temperatura: a água estava ótima.
Depois de tomar sol um tempo, resolvi mergulhar no lago principal, de águas azuis, muito transparente e fundo. Tive uma surpresa: a água era tão gelada que tive a sensação de mergulhar num lago glacial. Subi de volta à superfície afobadamente e nadei como uma máquina para a margem. Bernard riu:
— Você não nadou, andou sobre a água como um Cristo!
O que aconteceu foi que as pequenas lagoas mais rasas, com cerca de 1,5m de profundidade, esquentavam muito rapidamente sob o sol, enquanto os lagos mais fundos, com imenso volume de água, mantinham-se eternamente gelados naquela altitude.
Band-I-Amir era isso. Fantástico, de uma beleza de nos deixar de boca aberta, mas um lugar para se ficar apenas uns três ou quatro dias, porque, fora apreciar as paisagens, não havia muito o que fazer, à noite, principalmente. Percebemos isso quando o grupo que animou o Band-I-Amir Nightclub foi embora.
A estrada para o Paquistão
Voltamos a Kabul para nos abastecer de água mineral, frutas e biscoitos e pegamos o caminho do Paquistão pela estrada do norte. No dia seguinte, junto à fronteira, ainda no Afeganistão, avistamos velhos carros norte-americanos que transportavam pessoas entre a fronteira paquistanesa e a última aldeia do lado afegão, onde passamos a noite. Nunca vi automóveis carregarem tanta gente. Em um deles havia nove pessoas no interior e outras tantas no bagageiro sobre a capota, sentadas no pára-lama e no porta-malas sem o tampo. O veículo andava arreado; sua suspensão já era.
Na fronteira, do lado afegão, tivemos um contratempo. O policial da alfândega nos pediu uma declaração aduaneira que não nos fora fornecida quando entramos no país. O que ele queria, na verdade, era um bashish. Demos ao sujeito uma camiseta barata que me acompanhava desde o Brasil e tudo se resolveu.
O Afeganistão foi um dos lugares mais diferentes que tive a oportunidade de conhecer. Hoje, o país acabou para o turismo. Nem o turista mais irresponsável viaja por lá.
“A Vaca na Estrada” Uma ousada aventura pelos desertos da Ásia, de Paris a Katmandu, no Nepal de carro.