Londres e os brasileiros
Texto Rodrigo Enge
As temperaturas baixas, a umidade e a ausência de sol por dias a fio verificadas na Inglaterra contrastam com o clima tropical brasileiro. A língua, de origem anglosaxã, não tem praticamente nada em comum com o português. As dimensões dos dois países, cada qual em um dos hemisférios, também destoam, pois dentro do Brasil caberiam mais de 65 “Inglaterras”. Apesar de disparidades tão acentuadas, são inúmeras as influências inglesas na história e na cultura brasileiras.
Na era colonial, grande parte das nossas riquezas mineirais e naturais tiveram como destino a Inglaterra, de quem Portugal dependia politica e economicamente. A Revolução Industrial inglesa, iniciada no final do século XVIII, motivou a coroa britânica, sedenta por novos mercados, a exigir de Portugal a abertura dos portos brasileiros às “nações amigas” – leia-se, à Inglaterra. Se não fosse a vitória dos ingleses e de seus aliados sobre Napoleão na Batalha de Waterloo, talvez a coroa portuguesa estivesse exilada no Brasil até hoje. Mesmo na história da nossa dívida externa a Inglaterra está presente, pois para reconhecer a independência brasileira, em 1822, Portugal exigiu o pagamento de £ 2 milhões, quantia “gentilmente” emprestada pelos britânicos. Novamente tutelando interesses econômicos, o Parlamento Inglês aprovou em 1845 a Bill Aberdeen, que tornava ilícito o tráfico de escravos e autorizava qualquer embarcação inglesa a abordar e capturar navios utilizados para este fim. Incapaz de resistir à pressão inglesa, o Brasil promulgou uma série de leis que reconheceram direitos aos escravos, até abolir a odiosa prática em 13 de maio de 1888.
Ao longo de quase todo o século XIX e até as primeiras décadas do século XX, o Brasil foi um grande importador de produtos britânicos, principalmente maquinaria, tecidos, louças, vidros e objetos forjados em ferro. Um grande número de companhias inglesas se estabeleceu no Brasil, sobretudo em Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, atuando nos mais diversos setores: exportação de açúcar, borracha e algodão, serviços de telégrafo, casas de câmbio, construção de ferrovias, loteamento de áreas para moradia. Mas foi na região norte do Estado no Paraná que se verificou de maneira mais explícita a influência britânica em solo brasileiro quando, no início do século XX, um ambicioso e inovador projeto de colonização desenvolvido por ingleses, estruturado principalmente no cultivo de algodão, resultou na criação do município de Londrina, assim nomeado em homenagem à capital inglesa.
A presença britânica rapidamente influênciou a elite brasileira, que se esforçou para incorporar costumes como o uso de casaca e chapéu, o hábito de se tomar chá, a ética nos negócios (ou, melhor dizendo, alguma ética nos negócios) e o zelo pela pontualidade nos compromissos. Tamanha foi a influência britânica ao longo do século XIX que se dizia então: “Estamos sendo londonizados.”
Nas letras também há um elo entre as duas nações, verificado mais acentuadamente na influência sofrida por nossos poetas da geração ultraromântica pela obra de Lord Byron. De todos, foi Álvares de Azevedo quem mais se identificou com os temas visitados pelo poeta londrino (leia She Walks in Beauty e depois alguns poemas de Lira dos Vinte Anos apenas para confirmar). Byron teria se encantado com os versos do jovem brasileiro, cuja vida foi ainda mais efêmera do que a do boêmio inglês.
Se hoje o Brasil é o “país do futebol”, para o bem ou para o mal, devemos duplamente aos britânicos: primeiro, porque a eles é creditada a criação desse esporte. Em segundo lugar, porque foi Charles Miller, descendente de escoceses, o responsável por trazer o futebol para cá, após uma temporada de estudos na cidade inglesa de Southampton.
Os ingleses também estão presentes na origem de um dos clubes brasileiros mais tradicionais, o Sport Club Corinthians Paulista, capaz de despertar amores e ódios em quase todo mundo. Seu nome é uma homenagem ao time amador de futebol londrino Corinthians Football Club, que havia sido defendido por Charles Miller durante sua estada na Inglaterra e excursionava pelo Brasil em 1910. Mas muitos outros times brasileiros, tão ou mais tradicionais que a equipe paulista, fizeram questão de explicitar a influência inglesa na escolha do nome: Fluminense Football Club, Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, Sport Club Internacional, Coritiba Foot Ball Club, Sport Club do Recife.
Demorou um bocado mas, no final da década de 1990, jogadores brasileiros, que já haviam desfilado seus talentos nas outras principais capitais europeias, desembarcaram em Londres. Silvinho e Edu Gaspar, seguidos de Gilberto Silva, em 2002, fizeram parte das formações mais vitoriosas do Arsenal nos últimos tempos e abriram o caminho para que outros compatriotas fossem contratados pelos Gunners. O Chelsea demorou um pouco mais para reforçar a equipe com brasileiros, mas em 2004 contratou o zagueiro Alex e em seguida o lateral Belleti. Em 2008 chegaram o meiocampista Deco e o técnico Luis Felipe Scolari, primeiro brasileiro a comandar uma equipe inglesa.
Também sobre gramados londrinos, mas lidando com uma bola bem menor, uma brasileira marcou a história desportiva nacional: Maria Ester Bueno, tenista campeã de diversos torneios de grand slam nas décadas de 1950 e 60, dentre eles nada menos do que sete em Wimbledon, sendo três na competição individual e quatro na de duplas.
A carreira de Ayrton Senna também foi fortemente associada à Inglaterra, onde disputou e venceu os campeonatos da Fórmula Ford 1600, 2000 e Fórmula 3, adquirindo a experiência necessária para alcançar a Fórmula 1 e dominá-la por vários anos. Coincidência ou não, Senna somente defendeu escuderias inglesas durante toda a sua vitoriosa carreira: Toleman, Lotus, McLaren e Williams.
Em 1969, durante os duros anos de ditadura militar no Brasil, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos, tiveram seus cabelos raspados e seguiram para o exílio em Londres, onde viveram até 1972. Embora longe de casa, ambos artistas prosseguiram compondo, fazendo shows pela Europa e participando do fervilhante cenário musical que havia na Londres de então. Foi lá que Caetano compôs a belíssima London, London e que Gil teve a oportunidade de tocar em jam sessions ao lado do guitarrista David Gilmour (Pink Floyd) e do baterista Jim Capaldi (ex-Traffic). Isso sem mencionar a apresentação improvisada que os dois fizeram ao lado de outros músicos brasileiros no lendário festival de Island of Wight, onde a guitarra de Jimi Hendrix foi vista em ação pela última vez.
Por falar nos anos de chumbo, Ivan Lessa, editor e um dos principais idealizadores de O Pasquim, única publicação que tinha coragem e petulância de criticar a ditadura, foi para Londres em 1978 e decidiu ficar por lá. Trabalha para a BBC Brasil escrevendo crônicas, além de brindar seus leitores com um novo título de vez em quando.
Importantes músicos ingleses também fizeram e ainda fazem excursões ao Brasil (voluntárias, ao contrário de Gil e Caetano). Em 1968, os Stones Mick Jagger e Keith Richards estiveram por aqui em viagem de lazer passando por diversas cidades, dentre elas Matão, no interior de São Paulo, onde teriam composto a música Honky Tonk Women. Outra passagem pelo Brasil anos mais tarde rendeu a Mick Jagger a paternidade de Lucas, filho da apresentadora Luciana Gimenez.
A top model londrina Naomi Campbell também não esconde sua paixão pelo Brasil, onde vem frequentemente desfilar, descansar, divertir-se com amigos da “alta roda” tupiniquim e cuidar da saúde.
Outra celebridade britânica que costuma visitar o Brasil desde os anos 1990, mais precisamente a cidade baiana de Lençóis, na Chapada Diamantina, é o guitarrista Jimmy Page (Led Zeppelin). Turistas desavisados volta e meia deparam com ele dando uma “canja” em algum boteco e às vezes nem se dão conta de que estão diante de um dos mais importantes guitarristas da história do rock. O mesmo Jimmy Page e sua esposa Jimena realizam um trabalho voluntário junto a duas ONGs britâncias de apoio a crianças carentes brasileiras, a Task Brazil (The Abandoned Street Kids of Brazil Trust) e a ABC Trust (Action for Brazilian Children Trust). Esta última possui como patronos Pelé, a cantora Bebel Gilberto, o cineasta Fernando Meirelles, o guitarrista Brian May (Queen), os jogadores de futebol Silvinho e Edu Gaspar, o versátil Carlos Miele, o ator Jeremy Irons, entre outros.
Em 2006, a banda brasileira Os Mutantes, formada no final dos férteis anos 60, fez sucesso em Londres com uma série de shows nos quais Zélia Duncan substituiu Rita Lee nos vocais. A empatia com o público e a crítica musical foi enorme e a banda, apesar de idas e vindas, diferentes formações, desentendimentos e boatos, tem o status de cult entre os londrinos que curtem rock.
A comunidade brasileira em Londres tem crescido e se organizado bastante nas últimas décadas. É praticamente impossível saber o número exato de brasileiros que moram na cidade, pois muitos chegam à Inglaterra como turistas e acabam se instalando à revelia das autoridades britânicas. Estimativas, contudo, apontam para a impressionante marca de 150 mil brasileiros trabalhando ou estudando na capital inglesa, incluídos os clandestinos. Não se anda de metrô ou caminha pelas ruas londrinas sem cruzar com outros “brazucas”. Quem esteve na Trafalgar Square em 30 de junho de 2002, data em que a nossa seleção conquistou o pentacampeonato, teve uma ideia da enorme quantidade de brasileiros que residem em Londres, pois boa parte deles tomou conta da praça para festejar. Existe até, imagine você, a London School of Samba, uma autêntica escola de samba londrina fundada em 1984 sob o comando do mestre de bateria João Bosco de Oliveira, com o aval da Mocidade Independente de Padre Miguel.
Essa realidade explica a existência de duas revistas destinadas especificamente à comunidade brasileira na capital inglesa: Leros, criada em 1991 pelo jornalista paulistano Vicente Lou, e Jungle Drums, dirigida pelos brasileiros Gianna Toni e Juliano Zappia desde 2002. Ambas, cada uma a seu estilo, trazem matérias, informações úteis e anúncios de serviços de interesse para quem mora em Londres.
A exemplo do que ocorre com a mão de obra dos imigrantes de outros países menos desenvolvidos que se aventuram na Europa, os brasileiros geralmente são contratados para serviços subalternos e braçais, como garçom, varredor, pedreiro ou eletricista. Mesmo sem qualificação nem registro, esses trabalhadores chegam a receber por volta de £ 400 por semana. Driblando o elevado custo de vida com economias de todo tipo e cortando gastos supérfluos, não são poucos os que conseguem fazer gordas poupanças, quer para formar um pé-de-meia, quer para ajudar familiares no Brasil.
Kensal Green, Kilburn e Willesden Green, a noroeste da Central London, e Stratford, a leste, são regiões conhecidas por suas comunidades de brasileiros. Há também muitos deles em Bayswater e Notting Hill, bairros bem mais centrais. Porém, quem faz esta opção, ao invés de alugar casas ou apartamentos, mora nos bedsits, acomodações que consistem em um cômodo único (quarto e cozinha no mesmo ambiente) com banheiro coletivo.
Como se vê, a vida não é lá muito fácil para os brasileiros em Londres, mas mesmo assim a maioria não tem intenção de voltar ao Brasil, pois a situação por aqui pode ser ainda mais difícil. Por essas e outras a Inglaterra e os demais países da União Europeia estão sinalizando um enrijecimento nas penas para os imigrantes flagrados em situação irregular. Resta saber se os ingleses toparão lavar pratos, varrer ruas e assentar tijolos se todos os clandestinos forem mandados para casa!
¨ Ingleses no Brasil, de Gilberto Freyre, traz um rico estudo da influência britânica na cultura e cotidiano brasileiros ao longo do século XIX.
¨ Ivan Vê o Mundo: Crônicas de Londres é uma coletânea de textos inteligentes, sarcásticos e bem-humorados de Ivan Lessa, um ilustre brasileiro sediado em Londres há mais de 30 anos.
¸ O longa metragem Jean Charles (2009), com Selton Mello no papel principal, retrata a dura realidade dos brasileiros clandestinos em Londres.
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